quinta-feira, 7 de julho de 2011

O PORTADOR DA LUZ - Parte 3


Seis meses se passara, desde que assumira suas novas funções, porém, o coronel Campos nem tivera tempo para se dar conta. O termo Logística pegara em definitivo, sendo desse modo como o SBI era referenciado, mesmo em memorandos oficiais. Ele chegou a sorrir, lembrando de como toda uma linha de despistamento, evasivas e dissimulação se engendrara quase que automaticamente, desde que a Logística entrara em operações. Melhor assim, que continuassem pensando que o Brasil fosse somente o país do samba e futebol.

Contudo, o sorriso lhe desapareceu de imediato. Havia muito mais por detrás daquele palco conhecido. Era nos bastidores, mais propriamente nos subterrâneos, que os verdadeiros dramas se desenrolavam, ou melhor, que se desenrolavam os dramas que não chegavam ao conhecimento da população ou da imprensa e dos meios de comunicação.

Distraído, se deteve aos pensamentos. A situação lembrava-lhe alguns livros ou filmes de ficção, onde o mundo cotidiano seguia em sua vida normal, sem se dar conta da existência de fantasmas, vampiros ou todo um séquito de seres sobrenaturais, que atuavam escondidos nas sombras. Contudo, embora o pensamento o divertisse, o coronel não voltou a sorrir, desta feita. Para dizer a verdade, preferiria mil vezes que suas atuais considerações envolvessem fantasmas ou vampiros. Os desdobramentos certamente seriam de menor impacto.

O súbito toque do telefone o tirou dos devaneios. O coronel atendeu e ouviu por uns instantes, as feições se alterando, se tornando ainda mais rígidas.

– O mesmo nome, agora vindo através de outro informante? – questionou, arcando as sobrancelhas, de certa forma, surpreso. Contava com que a primeira informação tivesse sido errônea, mas agora, parecia ter os temores confirmados. – Encontre-o e o mantenha sob vigilância, não o perca em hipótese nenhuma. Não acredito em coincidências.

Campos desligou, o semblante preocupado. Sem se dar conta, questionava-se no íntimo se algum escritor de fantasia chegaria a cogitar e elaborar uma trama como a que se prenunciava. Em um pedaço de papel, escreveu Igreja da Luz e da Revelação. Instantes depois, anotou um nome e o sublinhou várias vezes.

****

Um mês antes do telefonema.

A súbita brisa suave contrastava com a noite quente, amenizando um pouco o calor, que imperara o dia todo. A danceteria, uma casa da moda e bastante badalada, se achava repleta, já havia horas, e ninguém desconfiava quem eram os verdadeiros proprietários ou a qual propósito servia.

Quase uma centena de pessoas se aglutinava ao lado externo, em uma fila interminável à porta, aguardando a vez de entrar, quando um luxuoso carro importado estacionou. A jovem, trajando um elegante vestido grafite, caído às costas de modo insinuante e generosamente aberto em uma das laterais, deixando exposta a coxa, desceu, sequer se voltando para os demais, ignorando a todos por completo. Quando chegou à porta, a entrada foi-lhe liberada de imediato, e com passos firmes e decididos, se dirigiu a um reservado, onde um homem, junto a uma mesa com algumas garotas, a aguardava.

– Está adiantada – comentou, em tom de cumprimento. – Fez boa viagem?

– Sempre faço – foi a resposta taciturna e lacônica.

A mulher observou o homem por uns minutos, em silêncio, aguardando que as companhias fossem dispensadas.

– Vão dançar um pouco, meninas, que tenho negócios a discutir – disse, com as garotas se levantando de pronto e deixando-o a sós com a recém chegada.

– Carniça... apelido curioso, o seu, até engraçado – comentou, denotando um sotaque pouco conhecido.

– Se você soubesse o que significa, boneca, não iria achar graça ou curiosidade alguma – respondeu o homem, com um sorriso cortado, que mais lembrava uma cicatriz. – Aceita uma bebida?

A jovem assentiu com a cabeça.

– Vodka pura... russa, por favor... dupla – completou após um instante, com Carniça acenando para o garçom mais próximo.

– Bem podia imaginar.

Em segundos, a garrafa envolta por uma capa de gelo foi trazida e uma generosa dose-dupla, servida.

A mulher tomou um gole, saboreando a bebida por um instante.

– Vamos aos fatos, o que Casimiro deseja desta vez? – perguntou por fim. – Espero que o suficiente para justificar minha vinda ao país.

– Pode ter certeza que sim, boneca. Você sabe que o seu Casimiro não brinca em serviço, e que só trabalha com coisa grande e gente fina, cheia da nota.

– Quão grande? – questionou, mantendo-se impassível.

– Grande. Só para começar, para o cliente sentir a mercadoria, são duzentos fuzis Kalashnikov AK-47. Se aprovado, e não duvido que irão aprovar, temos encomenda para mais dez mil.

– Dez mil? – perguntou, pela primeira vez, deixando transparecer um sorriso no canto da boca. – Interessante, os números começam a ficar expressivos.

– Foi o que eu disse, boneca. O seu Casimiro não pega peixe pequeno.

– Pressuponho que o cliente já tenha sido investigado. A última coisa de que precisamos é alguma surpresa de sua Polícia Federal ou de qualquer outro órgão. Algum chefão do tráfico?

– Não – respondeu, sorrindo e balançando a cabeça. – Você nunca imaginaria, boneca.

– Quem, então? – perguntou, enquanto sorvia mais um gole da vodka, saboreando-a antes de engolir.

– He he, é um religioso, garota, dá para acreditar? Um religioso.

 ****

Uma semana antes do telefonema.

Carniça se encontrava em um sítio afastado, próximo à rodovia Rio-Santos. O calor escaldante do dia ou o sol abrasador parecia não incomodá-lo, embora preferisse a noite, fosse pela temperatura ou pelo escuro.

Contudo, a espera não se fez demorar. Pouco mais de quinze minutos, um carro adentrou ao local. Um homem de terno, pouco acostumado àquela temperatura, desceu.

– Isto é o Inferno! – exasperou-se, enxugando a testa com um lenço, sentindo de imediato a camisa molhar.

– Se você está dizendo... – respondeu Carniça, com denotado desdém. – Mas é você que está de paletó.

– Não importa – respondeu homem, apressado. – Está confirmado? – perguntou, ansioso. Ele sabia que aquela informação nunca seria passada por telefone ou qualquer outro meio, senão pessoalmente.

Carniça acenou com a cabeça.

– Dia dez, daqui a uma semana, no cais do porto, a uma da manhã. Assim que chegar, ligue neste telefone e lhe será passado o local exato de onde estaremos – respondeu, entregando-lhe um pedaço de papel, com um número anotado.

– Ótimo, ótimo. O dinheiro será transferido ainda hoje – respondeu nervoso, se virando em seguida para retornar ao carro.

– Ô, chapinha! – chamou Carniça, fazendo o homem se voltar. – Não faço idéia de que tipo de reza você pretende fazer com a mercadoria, e nem quero saber, mas espero que você esteja presente no horário combinado. Não vamos liberar a mercadoria para mais ninguém, tá compreendido? O seu Casimiro não gosta de surpresas. Apronta prá cima da gente que tua igreja vira um amontoado de pedra, tá me entendendo? Se pisá na bola... – disse, balançando a cabeça em negativa – ...tua reza não vai adiantar prá nada!

O homem apenas confirmou com um aceno inquieto e entrou no carro. Em alguns minutos, se encontrava longe dali.

 ****

 Tempo atual.

– É uma suspeita, apenas uma suspeita, senhor presidente.

O homem calvo à frente enxugou a testa, continuando-se a movimentar de um lado a outro.

– Isso é muito sério, coronel Campos. A entidade que o senhor acabou de citar tem penetração nos principais municípios e vem se fortalecendo – comentou, apreensivo. – Sabe-se lá quantos deputados já a frequentam, inclusive senadores!

Pela centésima vez, ele se sentou à mesa, apenas para se levantar em seguida e reiniciar o vai e vem pela sala.

– Senhor presidente...

– Não podemos cometer o erro de nos precipitarmos e...

– Não vamos nos precipitar! – respondeu Campos, mais enfático do que pretendia. – Como lhe disse, são apenas suspeitas que nos apareceram, sequer imaginaríamos um envolvimento. Contudo, agora seria leviano não considerarmos a hipótese.

– Apenas quero que me entenda, não desejo um escândalo político. O segundo mandato vem aí, e se algo deste gênero ocorrer e você estiver enganado... – disse, deixando a frase no ar, erguendo os braços em sinal de desalento. – Às vezes tenho dúvida se fiz certo em autorizar a criação do SBI!

Aquela era a típica afirmação que tinha tudo para irritar profundamente um homem como Campos, mas apesar de tudo, controlou-se.

– Senhor presidente, – iniciou, procurando manter a voz pausada – não cometa o erro de julgar por antecipação. Somente me apresentei para nossa reunião padrão, e tudo o que fiz, foi lhe relatar o que se encontra em andamento. Caso o senhor não queira saber dos fatos, – disse, abrindo as mãos, de modo ostensivamente irônico – me diga e passarei apenas a lhe entregar um breve resumo.

O homem calvo se voltou de pronto. As bochechas se apresentavam vermelhas, com o corado subindo-lhe à testa e à calvície.

– Não disse isso! É lógico que quero estar inteirado de tudo!

– Pois então... – respondeu o coronel, sentindo-se bem próximo ao limite da paciência.

– Apenas não quero as coisas precipitadas. Meu predecessor...

– Seu predecessor foi um engodo! – explodiu Campos, interrompendo e erguendo-se por sua vez, fazendo o homem calvo recuar até a mesa. – É uma afronta citá-lo nesta sala, frente à Bandeira! Vai citá-lo para quê? Para falar daquilo que nada fez por este país ou pelo povo?

O homem calvo mal movimentou a cabeça, intimidado pela súbita reação.

– Recuso-me a escutar sobre um analfabeto bêbado, que flertava com o socialismo de guerrilha internacional e encobria uma verdadeira quadrilha, que espoliada o povo pelas costas, enquanto à frente, se desmanchava em sorrisos de débil mental e citava causas sociais que nunca levaram a nada! Admira-me o senhor, que foi eleito exatamente porque o povo não aguentava mais este tipo de postura!

– Coronel Campos, n-não quis dizer isso! – tentou articular. – Apenas enfatizo que espero que o senhor tome todas as precauções para não causar um escândalo político que...

Que venha atrapalhar suas pretensões à reeleição e blá, blá, blá, já sei! – pensou o coronel, não dando mais ouvidos àquele discurso. Não suportava pessoas fracas de caráter e pensamento.

– Senhor presidente, – disse por fim, não percebendo se interrompera ou não – fique tranquilo, tomarei todas as medidas necessárias para que nada de errado ocorra. Contudo, agora, deixe-me fazer o meu trabalho!

Sem mais uma palavra, virou-lhe as costas e saiu.

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Nelson Magrini por Nelson Magrini:

Nelson Magrini é Engenheiro Mecânico, estudioso e pesquisador em Física, com ênfase em Mecânica Quântica e Cosmologia. Escritor, professor e consultor em Gestão
Empresarial e Cadeira Logística, além de Agente Literário, com serviços de Revisão Ortográfica e Gramatical, Preparação de texto (Copy Desk), Leitura Crítica e outros.


É autor de CEIFADORES – Anjo a face do mal II, ANJO A Face do Mal e Relâmpagos de Sangue (Novo Século Editora), de Os Guardiões do Tempo (Giz Editorial) e de ter participado das coletâneas Amor Vampiro, com o conto Isabella (Giz Editorial), e Anjos Rebeldes, com o conto Em Nome da Fé (Universo Editorial). Foi elaborador e colaborador do Fontes da Ficção.

nelson_magrini@yahoo.com.br