quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O PORTADOR DA LUZ - Parte 8


Mar territorial brasileiro. Costa do Rio de Janeiro.

A traineira suja e envelhecida se mantinha totalmente às escuras, com as luzes apagadas, mesmo as de sinalização. Ali, tão afastada da costa e naquela madrugada sem Lua, a embarcação era virtualmente invisível. A aparência velha e desleixada do barco era proposital e enganaria até olhos treinados. Em seu interior, contudo, contava com os mais sofisticados equipamentos e recursos disponíveis que o dinheiro poderia comprar.

E foi exatamente um desses aparelhos que detectou algo grande e submerso, que se aproximava a considerável velocidade. O grupo reunido no convés se entreolhou, embora palavras fossem desnecessárias; todos ali sabiam de quem se tratava. Seis homens prontamente se armaram com fuzis Kalashnikov AK-47 e se posicionaram ao longo da murada da embarcação, precaução comum, em situações como a que se seguiria.

O homem em comando acenou satisfeito. Presteza e dedicação eram fundamentais, e era o mínimo que ele exigia. Apesar de sua natureza e vocação religiosa, sorriu com o canto da boca ao escutar os fuzis sendo engatilhados e mortalmente prontos para o combate, se necessário. Admirava aquela arma. Eficiente, confiável, de fácil manejo e, principalmente, barata, podendo ser comprada por trinta dólares à unidade, em alguns países da África. Ele bem vira seu uso e eficácia, em termos de poder de fogo e intimidação, nas mais diversas nações pelas quais peregrinara naquele continente.

Por um breve segundo, se viu outra vez em terras miseráveis, assoladas pelo infortúnio e destrato, e abandono de governos, mas logo tratou de deixar o passado de lado. Aqueles eram outros tempos e lugares. Agora, se encontrava em casa, em seu país, e seria aqui que ele traria de volta a temeridade a Ele nos corações dos homens.

Com um movimento firme e decidido, passou a esquadrinhar o mar, auxiliado por um binóculo militar de última geração. Apesar das proporções gigantes, sabia que aquilo que procurava também se encontrava invisível no escuro da noite. De acordo com os instrumentos, o submarino russo emergira distante uns setenta metros, porém, dado o sigilo daquela operação, qualquer comunicação por rádio estava excluída. Nenhum dos envolvidos podia se arriscar a ser detectado.

O homem aguardou com paciência. Sabia que os visitantes esquadrinhavam a região à procura de barcos patrulha ou submarinos da Marinha Brasileira. Não demorou, contudo, para que logo avistasse breves sinais luminosos. Diretamente à frente, o submarino piscava luzes, conforme o código internacional marítimo, solicitando que a traineira se aproximasse.

A palavra de ordem foi dada, e a embarcação manejou de imediato e, em pouco tempo, se postou paralelo ao submarino. Amarras foram jogadas, prontamente recolhidas e fixadas, prendendo-a firmemente ao gigante negro, que flutuava no oceano, encoberto pela noite.

Concluída o estágio de acoplamento, os estrangeiros não perderam tempo, iniciando uma atividade febril. Compostos em sua maioria por ex-soldados das Forças Soviéticas, alguns mercenários e, mesmo, civis, todos trabalhavam para a Máfia Russa. Em instantes, um potente guindaste já se encontrava preso e instalado na parte superior do submarino, junto à popa. Em seguida, um compartimento foi aberto e um estreito elevador trouxe um contêiner de proporções médias à superfície. Os marinheiros atrelaram com cuidado a carga ao guindaste para, em seguida, iniciaram a transferência do volume para a traineira.

Em nenhum momento qualquer palavra foi trocada. Os marujos trabalhavam rápidos e em silêncio. O comandante da traineira observava a operação, junto ao convés, assim como também o fazia outro homem, do alto da torre do submersível. Possivelmente, um oficial da antiga Marinha de Guerra Soviética, pensou o homem com o binóculo. Embora não soubesse por que, não acreditava se tratar do capitão. Era mais que previsível que este se resguardava no interior do submarino.

Apesar da aparente serenidade, um detalhe não lhe passou despercebido. De modo insistente, o homem no alto da torre mirava constantemente o relógio ao pulso, como se cronometrasse a manobra. Assim como todos ali, era transparente de que queria deixar aquele lugar o quanto antes.

A operação toda durou pouco mais de quarenta minutos, mas enfim, a preciosa carga se encontrava a bordo da traineira e firmemente ancorada.

De súbito, o silêncio foi quebrado, com o oficial na torre passando a gritar e acenar, chamando seus homens de volta.

O comandante da traineira não compreendia o idioma russo, mas pode notar o tom de urgência na voz do oficial, e logo lhe descobriu o motivo, tratando ele mesmo de cortar as amarras e de se afastar do submarino a toda força. Não tinha dúvidas de que, se necessário, a embarcação russa o arrastaria junto, mas apesar da ameaça que corria, entendia súbita pressa do oficial. Em seus próprios instrumentos, era nítida a repentina presença de outro submarino aproximando-se em velocidade e adentrando à área.

Antes de se deslocar àquela região, o homem se inteirara sobre o patrulhamento da costa por embarcações da Marinha Brasileira. Por suas informações, o submarino detectado pelo sonar deveria ser o S-30 TUPI ou o S-31 TAMOIO, mas enfim, tal detalhe não importava em si. Àquela distância, era pouco provável de que seu barco chamasse a atenção, ainda mais com um peixe bem maior, submergindo e se afastando a toda velocidade. Como lhe confirmando as expectativas, o sonar mostrou o submarino brasileiro alterando a rota e colocando-se em perseguição à embarcação russa. Duvidava que a alcançasse. A belonave russa, apesar de antiga, era um submarino nuclear muito mais veloz e, em breve, se encontraria em segurança nas profundezas de águas internacionais.

O homem sorriu largo, desta feita com satisfação, e ergueu os olhos aos céus. Apesar dos riscos que a operação envolvera, a bênção d’Ele lhe fora favorável.

O raio e o trovão se encontravam a bordo. Agora ele dispunha da luz e da palavra.

****

O coronel Campos despertou pelo som contínuo da linha de alta prioridade. A mensagem fora lacônica e informava sobre um incidente em águas territoriais, a presença de um submarino não identificado, cujos pelos dados, possivelmente, apontavam para origem russa. O informe terminava dizendo que o desconhecido rapidamente rumara para águas internacionais e que todo o tempo se mantivera fora do alcance de interceptação.

Campos não voltou a dormir. Permaneceu deitado por um momento, levantando-se em seguida. Na mente, mil fatos se conectavam, mostrando-lhe paralelos e possibilidades, desenhando uma tenebrosa e quase impossível simetria. Os receios, que haviam crescidos nos últimos meses, pareciam se confirmar da maneira mais negra possível.

****

A reunião fora convocada ainda pela madrugada, marcada para as primeiras horas daquela manhã.

– Café, coronel?

– Obrigado, Júlio – agradeceu, sorvendo um bom gole do café recém feito. – Muito bom, estava precisando disto.

– Noite ruim?

– Como se você não soubesse... – respondeu o coronel, conformando-se com o cansaço que compartilharia pelo resto do dia. Aquele seria um dia duro para todos da Logística.

Sorveu outro gole de café, depositou a caneca sobre a mesa de reuniões e, por fim, se voltou para o agente Francisco.

– Pois bem, vamos começar. Repasse o que temos até agora, Francisco.

O agente apanhou um dos vários dossiês espalhados por sobre a mesa.

– João Cândido Renan. Sem referências profissionais. Filho único, pais religiosos dedicados. Até onde sabemos, foi educado e sempre viveu para pregar sua religião. A família possuía terras nos arredores de Araçatuba e cidades próximas. Reconhecidamente próspera, vivia do comércio entre produtores da região. Os pais morreram quando ele tinha a idade de vinte anos. Herdeiro único, vendeu tudo e criou a Igreja da Luz e da Revelação e, a seguir, mudou-se para o Timor Leste. Acredita-se que tenha estado peregrinado e pregando por lá, além de outros países da África, durante os últimos anos, embora sejam poucas as referências. Um advogado, ligado à família e posteriormente à igreja, cuidava da administração de seus bens.

– Ou seja, – interrompeu Campos – mesmo não sendo um milionário, dinheiro não lhe faltava.

– Mesmo assim, – prosseguiu Francisco – parece que levou uma vida bastante simples e abnegada, enquanto esteve fora do país. Também não foram encontrados sinais de que tenha desenvolvido quaisquer atividades ilegais, belicosas ou atos de violência. Somente após seu retorno ao Brasil, a Igreja da Luz e da Revelação passou a crescer de modo significativo.

O coronel olhou firme para o agente, apertando os lábios.

– E isso me preocupa mais ainda. Seja de que maneira tenha sido, agora o senhor Renan não só tem uma considerável fonte de renda à disposição, advindo de um sem número de donativos, coletados em todos os cantos do país, bem como, parece ter algum objetivo bastante definido.

O coronel puxou o dossiê para si, olhando por um momento a foto de João Cândido Renan.

– Vai saber o que se passou com ele, após todos esses anos, naquelas regiões miseráveis por onde andou – ponderou, deixando a questão no ar. – E se sofreu alguma decepção com a fé? Ou o contrário, ela se reforçou ao extremo por qualquer motivo? Ele pode ter se tornado um fanático ou, quem sabe, tenha enlouquecido. O que se pode esperar de uma pessoa assim?

O silêncio permeava a sala. Não havia respostas àquelas colocações.

– A questão é que não me parece que a Igreja da Luz e da Revelação tenha a intenção de realizar apenas boas ações por aqui – prosseguiu o coronel. – Primeiro, tivemos àquela apreensão dos Kalashnikov. Foram duzentos fuzis AK-47. Tudo indicava que eram destinados ao narcotráfico, mas aí houve a identificação positiva de um dos membros da tal igreja, José Marcindo Gomes, – disse, consultando o dossiê – envolvido com a transação. As apurações não foram conclusivas, mas não se afastou a suspeita de que ele possuía relações com o alto escalão da igreja e, mesmo, diretamente com Renan. Alguns dias depois, o envolvido morre em um assalto, à porta de casa, algo bastante comum, mas bem conveniente.

Campos se levantou e se dirigiu a uma das janelas. Do lado de fora, um belo gramado que se estendia ao longe, com alguns outros prédios à distância, dava-lhe a impressão de que se encontrava em um campus universitário.

– Em sequência, Renan iniciou uma série de pregações, atraindo cada vez mais pessoas, conseguindo penetração em todas as classes sociais, passando a ser uma figura conhecida, com algum destaque nos meios de comunicação. Obviamente, não passou despercebido, em seus cada vez mais inflamados discursos, os termos “pecador”, “punição” e “sem clemência”, repetidos à exaustão. E quase sempre juntos e nessa ordem.

O coronel se deteve, olhando para lugar algum, como com os pensamentos longe dali, retornando à mesa, após um tempo.

– E finalmente, chegamos na... – Campos puxou o dossiê para si, outra vez, e o folheou até encontrar a referência procurava. – Ah, sim, aqui está. Chegamos à “Passeata pela Palavra”!

O coronel atirou a pasta com o dossiê em cima da mesa. Sua frustração e impaciência com aquela situação eram nítidas.

– Um belo nome de efeito. E todos sabemos muito bem a que isso levou.

– Distúrbios quase incontrolados por diversas cidades do país – completou Francisco. – Em alguns pontos, a coisa ficou tão exaltada e séria, que chegaram a acontecer confrontos com a polícia, com várias pessoas tomadas como reféns.

– Exatamente. E mais uma vez, quando os envolvidos foram detidos, se fez apreensão de armas, todas de origem soviéticas.

– Mas como da vez anterior, não se conseguiu nenhuma associação com a cúpula da igreja – comentou o terceiro homem, mais ao fundo da sala.

– Sei bem disso, Júlio... – respondeu o coronel, um tanto distante e deixando transparecer o cansaço – ...sei muito bem disso.

– Por fim, – prosseguiu Francisco, após um tempo – tivemos o incidente na costa, nesta madrugada. Embora não tenhamos nenhuma indicação de qualquer ligação do incidente com Renan, há fortes indícios de que era um submarino russo, o que pode ou não ser uma coincidência. A questão é: o que ele fazia aqui?

– A questão não é essa, Francisco, a questão é outra – ponderou o coronel, em tom grave e preocupado. – O que ele fazia aqui todos nós sabemos. Não somos alvos militares da Rússia, ainda mais sem todo o antigo poderio soviético à disposição. Com certeza, eles gastam seus recursos, agora bem mais escassos, com seus antigos inimigos, mesmo que entre eles, e para o mundo, se tratem com sorrisos e apertos de mãos. Não, esse submarino fazia o que muitos outros fazem, a serviço da Máfia Russa. Ele fazia uma entrega, e aí chegamos à questão. E a questão é: o que foi entregue e quem a recebeu?


****

Dezenove horas antes.

República da Kaquislovênia, antiga União Soviética.

A base militar aparentava abandono, castigada pela neve e por uma temperatura de trinta e cinco graus abaixo de zero, muito embora, poucos desconfiassem que as temperaturas naquela região costumavam chegar próximas ao dobro, no rigor do inverno continental.

Muitos metros abaixo da superfície, aparentemente deserta, um telefone tocou. O major Mikhail Ilyanovsk atendeu de pronto, como se já esperasse a ligação.

– Sim, temos a confirmação, o depósito foi feito. Pode despachar a mercadoria. A propósito, esse cliente tem dificuldades em receber esse tipo de artigo em terra, portanto, a entrega será feita no mar.

Ilyanovsk aguardou os comentários do outro lado da linha.

– Está bem, está bem, não se preocupe! O velho SSBN – PIOTR VELIKI dará conta do recado. Apenas lembre-se de que estaremos em águas territoriais, e a única coisa de que não precisamos é de um incidente internacional, sem dizer, é claro, um cliente descontente. Isso seria péssimo para os negócios.

O major Ilyanovsk aguardou uma vez mais.

– Não importa, Demitri! O que importa é que ele pagou setenta milhões de dólares, os quais já estão em nossa conta! O quê? Sim, fiz um desconto, afinal, ele levou duas – respondeu, rindo a valer. – E não foi isso o que aprendemos com o capitalismo? Escoar os produtos e girar os estoques? E daí se eles pechincham? Deixe pechinchar! Damos um desconto aqui, pedimos mais caro ali, e assim todos ficamos contentes. É bom para os negócios, o cliente fica feliz e eu fico feliz, Demitri. E quando eu fico feliz, todos ficamos felizes, isto é capitalismo, Demitri. Afinal, os americanos tinham que servir para alguma coisa, não?

O major fez uma nova pausa.

– Esqueça o coronel Stolichnov, ele ainda pensa em termos do Partido e glórias passadas. Os tempos mudaram, Demitri, e nós mudamos com ele. Relaxe e aproveite a vida, deixe que os outros se matem, agora. Não estamos mais nesse jogo. Agora somos negociantes, respeitáveis homens de negócios, e contribuímos para a iniciativa privada.

O major Ilyanovsk sorriu e desligou. Ele estava satisfeito. Os negócios prosperavam e as demandas aumentavam. E mais ainda, não era todo dia que recebia um pedido de seu artigo mais caro, e dois de uma única vez.

Apenas uma coisa o deixava curioso em relação àquela venda. Não conseguia imaginar o que um brasileiro, um povo distante das tensões mundiais, pudesse querer com duas ogivas nucleares de quinze quilotons cada uma.

Um comentário:

Nelson Magrini por Nelson Magrini:

Nelson Magrini é Engenheiro Mecânico, estudioso e pesquisador em Física, com ênfase em Mecânica Quântica e Cosmologia. Escritor, professor e consultor em Gestão
Empresarial e Cadeira Logística, além de Agente Literário, com serviços de Revisão Ortográfica e Gramatical, Preparação de texto (Copy Desk), Leitura Crítica e outros.


É autor de CEIFADORES – Anjo a face do mal II, ANJO A Face do Mal e Relâmpagos de Sangue (Novo Século Editora), de Os Guardiões do Tempo (Giz Editorial) e de ter participado das coletâneas Amor Vampiro, com o conto Isabella (Giz Editorial), e Anjos Rebeldes, com o conto Em Nome da Fé (Universo Editorial). Foi elaborador e colaborador do Fontes da Ficção.

nelson_magrini@yahoo.com.br